Proposta da nova previdência ainda tem vários pontos críticos. Trabalhadores continuam perdendo muito. Privilégios permanecem.

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Proposta da nova previdência ainda tem vários pontos críticos. 

Trabalhadores continuam perdendo muito. Privilégios permanecem.

Clemente Ganz Lúcio[1]

O projeto de reforma da previdência avançou na Câmara dos Deputados, depois de receber reação contrária de parte da sociedade, em especial dos movimentos sindical e social, que repudiam as inúmeras medidas que transformam a seguridade social e o sistema previdenciário brasileiro. A proposta retarda o acesso à aposentadoria, impondo idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 para homens; dificulta ou impede o acesso aos benefícios previdenciários, com o aumento do tempo mínimo de contribuição, em um contexto no qual crescem a informalidade e as ocupações precárias; arrocha o valor dos benefícios e das pensões; cria dezenas de novas regras restritivas.

O objetivo principal da reforma, de acordo com o governo, é promover economia de R$ 4,5 trilhões em 20 anos – R$ 1,2 trilhão nos primeiros 10 anos (R$ 120 bilhões por ano) e R$ 3,3, trilhões na segunda década (R$ 330 bilhões por ano). Cerca de 80% dessa economia será feita às custas de milhões de aposentados e pensionistas que recebem benefício médio próximo a 1,5 salário mínimo. Cortar todo esse montante em benefícios previdenciários é retirar renda e reduzir a capacidade de consumo das famílias e a demanda para o sistema produtivo. As mudanças na proposta original feitas na Câmara reduzem um pouco as metas do governo, mas valores exatos ainda precisam ser mensurados.

Para entender o tamanho do arrocho que a reforma promove, vale recapitular um pouco. A política de valorização do salário mínimo reajustou essa remuneração em mais de 74%, entre 2004 e 2019, o que trouxe incremento da massa salarial e do poder de consumo das famílias, dinamizando a demanda e o crescimento econômico. O aumento real chegou a R$ 425,00 (o mínimo hoje seria de R$ 573 sem os aumentos reais). Considerando que cerca de 48 milhões de pessoas recebem remuneração correspondente ao salário mínimo (assalariados, aposentados e pensionistas, trabalhadores por conta própria, domésticos), a política adicionou cerca de R$ 265 bilhões por ano à massa de rendimentos do trabalho, ajuda consistente e virtuosa para a economia do país.

A partir dos cálculos iniciais do governo, a proposta original de reforma da previdência retiraria anualmente, na primeira década, o equivalente a 45% da massa salarial aportada pela política de valorização do salário mínimo (R$ 110 bilhões dos R$ 265 bilhões/ano aportados). Na segunda década, seria suprimido o correspondente a 1,25 vez (R$ 330 bilhões, muito mais do que os R$ 265 bilhões inseridos). Esses montantes diminuíram em função das mudanças paramétricas promovidas até o momento. Ainda assim, os impactos restritivos serão severos.

A atuação dos movimentos sociais e sindical conseguiu mudar o conteúdo original da proposta de reforma da Previdência. Como consequência, durante a votação em primeiro turno na Câmara, os estragos foram minimizados, com: a retirada do item sobre extinção do regime de repartição e a criação do regime de capitalização; revisão de alguns dos inúmeros aspectos que serão desconstitucionalizados e remetidos para lei ordinária ou complementar; manutenção das regras atuais para o BPC; preservação do tempo mínimo de contribuição das mulheres em 15 anos; reversão de grande parte das alterações propostas para os trabalhadores rurais; preservação da diferença de idade para professores e professoras; atenuação de algumas das severas regras de transição; manutenção, para os homens, nas regras de transição do tempo mínimo de contribuição de 15 anos para se aposentar aos 65 anos de idade (para os homens que ingressarem no mercado de trabalho após a promulgação da Lei, o tempo mínimo de contribuição será de 20 anos); supressão do tópico que indicava aumento automático da idade mínima para aposentadoria; permanência do piso previdenciário vinculado ao salário mínimo e da proteção à maternidade; redução das duras restrições às pensões; diminuição da idade mínima para aposentadoria voluntária de policiais federais; alteração das regras de cálculo do valor da aposentadoria das mulheres; revisão do repasse dos recursos do FAT ao BNDES, entre outros aspectos.

As Centrais Sindicais se reuniram com lideranças e parlamentares de muitos partidos, para debater o conteúdo da reforma e o processo legislativo, além de apresentar os pontos críticos que ainda permaneceram no projeto aprovado:

Desconstitucionalização dos parâmetros previdenciários. A legislação ordinária e complementar definirá parâmetros válidos para o Regime Geral e para o Regime dos Servidores, o que poderá gerar insegurança para os segurados atuais e futuros e desigualdades entre os regimes de servidores da União, dos estados e dos municípios.

  • Privatização dos benefícios não-programáveis em geral, o que hoje está limitado ao seguro acidente de trabalho.
  • Privatização dos Regimes de Previdência Complementar dos servidores públicos. Atualmente, esses regimes devem ser instituídos por entidades fechadas de previdência, de caráter público. Na proposta, os planos de previdência complementar poderão ser contratados com entidades abertas e de natureza privada.
  • Segregação das contas da Seguridade Social. Cada área da Seguridade deverá ter contas de receita e despesa identificadas. Isso é o fim do propósito de integração das ações de saúde, previdência e assistência como Sistema de Seguridade, colocando em risco o financiamento dos serviços universais.
  • Ausência de contribuição dos mais ricos. A PEC e o substitutivo nada exigem dos efetivamente ricos do país e repassa a conta do ajuste quase que totalmente para os trabalhadores da iniciativa privada e servidores públicos.
  • Fim da aposentadoria por tempo de contribuição, impondo idade mínima para todos. Dessa forma, não reconhece que grande número de trabalhadores urbanos e rurais inicia a vida laboral muito cedo, contribui por longo período de tempo e, ao atingir certa idade, já perdeu a condição física de exercer a atividade, além de não ser admitida em empregos formais. Com isso, apesar de ter contribuído, não consegue se aposentar. É necessário dar reconhecimento ao tempo de contribuição e aos casos em que a aposentadoria antecipada em relação à idade mínima seja justificada.
  • Elevação da idade mínima de aposentadoria das mulheres, penalizadas em dois anos (de 60 para 62 anos), apesar da dupla ou tripla jornada, da discriminação que encontram no mercado de trabalho e das dificuldades para o equilíbrio entre vida familiar e vida laboral. A idade mínima de aposentadoria das professoras pelo RGPS passa de 55 anos para 57 anos.
  • Regra de cálculo do valor da aposentadoria arrocha valor do benefício, porque parte de 60% do salário de benefício (média arrochada) para quem completou o mínimo de 20 anos de contribuição, no caso dos homens, e 15 anos de contribuição, para mulheres, e acrescenta 2% a cada ano adicional de contribuição até o máximo de 100% do salário de benefício. O valor dos benefícios será reduzido em relação às regras atuais (que garantem mínimo de 85%, e não de 60%, como proposto), passando a exigir 40 anos de contribuição para que se atinja a chamada aposentadoria “integral” (100% da média) se homem e 35 anos de contribuição se mulher.
  • Cálculo da média sem descarte dos menores salários de contribuição. Ao manter a regra de cálculo que considera a média de 100% das remunerações ou dos salários de contribuição, o valor do benefício é rebaixado em relação ao procedimento atual, distanciando ainda mais o valor do benefício dos rendimentos que o segurado aufere quando está próximo de se aposentar.
  • Tempo mínimo de 20 anos de contribuição para homens que ingressarem no mercado de trabalho. Ampliação dos atuais 15 anos para 20 anos para trabalhadores urbanos. Diante da situação de alta informalidade, de desemprego elevado e de longa duração, de alta rotatividade e de baixos rendimentos, a elevação desse requisito representa fator de exclusão da proteção previdenciária dos setores mais vulneráveis da sociedade.
  • Regra de transição restrita tem alcance limitado. Parcela muito pequena dos atuais segurados do Regime Geral e dos Regimes dos Servidores terá alguma vantagem se optar pela regra de transição em comparação com a regra geral de aposentadoria. A transição deveria ser ampla, reconhecendo o tempo de contribuição de cada segurado durante o tempo de vigência das regras atuais. O mesmo princípio deve ser levado em conta para o valor dos benefícios de aposentadoria concedidos sob as regras de transição.
  • Pensões com valores reduzidos por meio do sistema de cotas e a não vinculação do benefício de pensão por morte ao salário mínimo, com exceção dos casos em que esta é a única fonte de renda formal do dependente. Com isso, haverá redução no valor do benefício, apesar das contribuições prévias dos segurados. Além disso, a restrição ao acúmulo de benefícios tenderá a cortar parte das pensões, mesmo abaixo do teto de benefícios do RGPS.
  • Restrição do pagamento do abono salarial, com valor menor do que um salário mínimo. Com a proposta aprovada na Câmara, o abono só será pago a quem ganha o correspondente a 1,37 salário mínimo – hoje, recebe abono quem ganha até dois mínimos. E o valor ainda poderá ser menor do que um salário mínimo.
  • Aposentadorias especiais por agentes nocivos e risco de vida. Os requisitos de idade e tempo de atividade sob condições nocivas praticamente inviabilizam a obtenção desse benefício por parte do trabalhador. Além disso, ao suprimir o risco à integridade física como motivo para a aposentadoria especial, há tratamento não isonômico entre policiais e outros trabalhadores que, em virtude da ocupação, expõem-se a risco.

 

Como o projeto segue em tramitação no Congresso Nacional, ainda dá para tentar minimizar esses danos. O movimento sindical e social tem muito a fazer.

[1] Sociólogo, diretor técnico do DIEESE.